Semelhanças entre o ECA e o Método Paulo Freire

Na busca de um outro mundo possível é que se encontram os princípios de ambos.

Estabelecer semelhanças entre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Método Paulo Freire pode parecer, a princípio, algo difícil. No entanto, é possível identificar, em ambos, pontos comuns – pois tiveram como principal inspiração o desejo de assegurar direitos fundamentais.

Para melhor compreensão das singularidades, pensemos no Método Paulo Freire e no ECA como um conjunto de princípios, ancorados em uma visão de ser humano cuja vocação é “ser mais”. Assim como não se pode reduzir o ECA a um conjunto de leis, não se pode conceber o Método como uma sequência de passos para apreensão do código escrito. Eles vão muito além disso.

A proposta do ECA é a de garantir os direitos humanos de crianças e adolescentes do Brasil, e isso exige mudanças significativas na forma em como se concebe a infância e a adolescência. O Método Paulo Freire propõe a libertação de homens e mulheres por meio da educação, mas não qualquer educação, uma educação transformadora, o que exige a mudança da perspectiva de educação bancária para a libertadora. As duas situações impõem a necessidade da conscientização, conceito determinante na teoria freiriana.

O diálogo, outro princípio fundamental da proposta de Paulo Freire, está presente também no ECA. A proteção, o cuidado, a prevenção, o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer não se concretizam sem o diálogo constante com órgãos governamentais, movimentos sociais, entidades públicas e privadas, a família, enfim, com toda a sociedade.

Mas, apesar de ter sido um grande avanço, o ECA necessitou de ajustes ao longo desses 24 anos, no sentido de ampliar os direitos e criar mecanismos de proteção para o público ao qual se destina. Isso porque a sociedade está em permanente processo de mudança e surgem, a cada dia, novas demandas sociais.

O Método Paulo Freire também exige recriação constante, embora continue atual no que diz respeito à dimensão política, à relação dialógica entre educador e educando, à valorização dos conhecimentos prévios dos estudantes, no respeito à diversidade cultural, entre outros aspectos. A consciência do inacabamento se faz necessária e um elo comum entre ambos.

Segundo Paulo Freire (1997, p. 64[1]), é na inconclusão do ser que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornam educáveis na medida em que se reconhecem inacabados.

A experiência que consagrou o Método Paulo Freire na década de 1960 mostrou que seria possível eliminar o analfabetismo no País e, não fosse o golpe civil-militar, esse sonho teria sido levado adiante.

O ECA também abriga o sonho de ver crianças e adolescentes exercendo o direito à cidadania plena.

Quando esteve à frente da Secretaria de Educação de São Paulo, Paulo Freire declarou em uma palestra: […] Penso nos meninos com fome, nos meninos traídos, nas meninas vilipendiadas, nas ruas deste país, deste e de outros continentes. Meninos e meninas que estão inventando outro país. E nós, mais velhos, temos que ajudar essas meninas e esses meninos a refazer o Brasil. […] Ajudemos esses meninos a reinventar o mundo.

É na busca pela construção de um outro mundo possível que se encontram e se complementam os princípios do ECA e do Método Paulo Freire. Que possamos fortalecer os fios que os une e, com eles, tecer um País muito mais justo e solidário.

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Sonia Couto Souza Feitosa é mestre e doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP. É autora do livro Método Paulo Freire, a reinvenção de um legado (Brasília: Liber Livros, 2008) e de livros didáticos para EJA na perspectiva freiriana. Tem artigos publicados em revistas acadêmicas e em cadernos pedagógicos para Secretarias Municipais de Educação. Atualmente, coordena o Centro de Referência Paulo Freire que tem como missão socializar e dar continuidade ao legado de Paulo Freire. Contato: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.


Por Sonia Couto Souza Feitosa

[1] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.